Literatura e bruxaria na América Latina: entrevista com Pilar Bu

Literatura e bruxaria na América Latina: entrevista com Pilar Bu

Por Lara Torres

Comecei a me interessar por bruxaria escutando Maria Carolina Casati, pesquisadora de literatura de autoria feminina negra e criadora do projeto de leitura Encruzilinhas, falando sobre o tema. Foi através dela que conheci "Eu, Tituba: bruxa negra de Salem", romance de Maryse Condé, autora da ilha de Guadalupe (Caribe). Tituba foi uma das primeiras mulheres julgadas no tribunal de Salem, pequeno povoado na América do Norte, pela suposta prática de bruxaria, em 1692. Como uma mulher negra e escravizada, Tituba teve sua história apagada da historiografia oficial - até Maryse Condé tomar para si a missão de conjurá-la em seu texto.

Conto isso tudo pois foram elas, Tituba e Carol Casati, a origem do clube de leitura e de debate Nós do Sul - Temporadas Literárias, dedicado a escritoras latino-americanas e caribenhas, que inauguramos daqui a pouco, em maio, na Casa Inventada. Então, como havia de ser, decidimos abrir os trabalhos desta primeira temporada com magia & bruxaria.

Maria Carolina Casati

Nesta entrevista, converso com Pilar Bu, pesquisadora de literatura latino-americana, criadora do projeto Vértebra Latina e co-curadora do clube sobre como a magia vem sendo retratada em obras de autoras contemporâneas; sobretudo como estratégia para dar conta dos diversos problemas que vivemos aqui, no Sul Global, da violência de gênero à colonização. 

 

Lara. O imaginário que temos da bruxaria no Brasil me parece muito ligado a um importado da Europa e dos Estados Unidos, que é a figura de uma mulher velha e maléfica que tem um nariz pontudo, usa chapéu e faz poções num caldeirão. Mas os livros que você e Carol Casati selecionaram para o clube ativam um imaginário muito diferente, intimamente ligado às culturas dos povos do Sul Global. É uma outra noção do que é bruxaria. Pode contar um pouco sobre como esse tema aparece na literatura contemporânea de autoras latino-americanas e caribenhas?

Pilar. Esse imaginário da mulher maléfica de nariz pontudo foi criado como um estereótipo da velhice, mas existe também o seu oposto, que é uma espetacularização ou sexualização dessa figura. Um exemplo é Sabrina [personagem do filme “Sabrina - Aprendiz de Feiticeira”, dos anos 2000], que solta glitter rosa, faz umas poções e resolve alguns problemas pueris do cotidiano. Ou seja, é uma espetacularização da magia em um cenário de privilégio do norte global. Por outro lado, as representações da bruxaria na América Latina e no Caribe são atravessadas por discursos e problemáticas oriundos desses territórios. A mulher bruxa que tem ganhado cada vez mais visibilidade na literatura de autoras contemporâneas está preocupada com a coletividade e com as dores femininas, como em "Cometerra" [de Dolores Reyes, publicado no Brasil pela Editora Moinhos em 2022] em que a personagem ingere terra para desvendar crimes de gênero, feminicídios, estupros; e em "Eu, Tituba: bruxa negra de Salem" [de Maryse Condé, Rosa dos Tempos, 2019], cuja personagem é alguém que usa os saberes e ensinamentos caribenhos ancestrais para lidar com uma realidade permeada de violências de raça, no contexto da escravização. Em resumo, são mulheres que conjuram feitiços, palavras e saberes para dar conta das violências que atravessam o Sul Global. E pelo que a América Latina é atravessada? A colonização e seus efeitos nefastos e o fato de ser uma das regiões mais violentas do mundo para a mulher. São violências de gênero, de raça, ditaduras, estados de exceção, controle dos corpos. 

 As escritoras que falam sobre bruxaria na América Latina vão pensá-la como estratégia para dar conta dessas experiências violentas.

Outro ponto interessante é a ascensão das líderes xamânicas nessas obras. Quando jovens, essas bruxas são mulheres que estão ascendendo como guias xamânicas de suas comunidades; na velhice, são lideranças espirituais, guardiãs da sabedoria do grupo. Este é um ponto crucial da bruxaria na América Latina: traz consigo uma sabedoria ancestral. Se for uma mulher negra, trará uma sabedoria do passado africano, dos saberes e tradições que foram silenciados pela colonização. É o que acontece em Cometerra. Em Gótico Mexicano, a aparição da bruxa questiona a escravização e, em Tituba, a mesma coisa. A representação da bruxa na América Latina tem uma outra natureza porque o que torna esse território um caldeirão de efervescências são as lutas e disputas que travamos aqui.

Lara. Falando sobre o clube de leitura Nós do Sul, qual o ponto de partida para a escolha dos livros "Tituba", "Gótico Mexicano" e "Porém bruxa"?

Pilar. Um ponto de partida ao selecionar os livros desta temporada foi mostrar as diferentes Américas dentro da América Latina. Não se pode pensar num conceito estático, cartesiano, pois existem muitas Américas que nem sempre coincidem com as fronteiras territoriais. Existe a América Andina cortada pela Cordilheira dos Andes, a América Platina, cortada pelo Rio da Prata, o Cone Sul, a América Central, o Caribe, o México, a Améfrica Latina, que é negra e diaspórica. E há uma série de confluências de saberes, pensamentos e tradições compartilhadas que borram essas fronteiras de forma inegociável. Pensamos então em um percurso que começa no Caribe com "Tituba", essa bruxa ancestral que bagunça a noção branca, europeia e higienizada de quem eram as bruxas; vamos para o México com "Gótico Mexicano" [de Silvia Moreno, Darkside, 2021] obra que faz uma profunda releitura do estilo gótico europeu, dando a ele outros contornos ao abordar os efeitos da colonização sobre os corpos das mulheres pretas e dos povos originários; e, por fim, chegamos ao Brasil com "Porém, Bruxa" [de Carol Chiovatto, Suma, 2023] para conhecer uma bruxa contemporânea em plena cidade de São Paulo, uma bruxa urbana, ressignificada e moderna. Como é ser uma menina negra no coração do país se descobrindo bruxa e entendendo qual é sua magia? 

Obras que leremos na temporada #1 do Clube de Leitura Nós do Sul

Lara. Você já falou um pouco sobre a associação entre a bruxa e o feminino. Mas como surgiu esse imaginário?

Pilar. É difícil fazer uma reconstrução histórica do imaginário da bruxa, mas há mulheres consideradas monstruosas desde a Grécia antiga. Uma das bruxas mais conhecidas de todos os tempos é Circe, que aparece na Odisseia, filha de deuses e muito poderosa. Ela é mostrada na história ocidental como uma mulher raivosa porque perdeu Odisseu. Existe também o imaginário da vagina dentada, como se a vulva feminina fosse uma boca que comesse homens. Todas essas são construções monstruosas. Lilith, a primeira mulher criada por Deus, considerada demoníaca, já era uma bruxa. A caça às bruxas é um momento da história da humanidade em que esse imaginário se materializou contra as mulheres, mas ele é muito antigo.

Se existem infinitas maneiras de ser mulher, culturas diversas e distintas formas de apreensão do mundo, existem também várias formas de bruxaria.

Lara. É possível definir o que é uma bruxa? Ou o que define a bruxaria? Seria a mobilização de um conhecimento ancestral, dos antepassados, da natureza ou ainda uma relação com a espiritualidade, com o mundo invisível?

Pilar. Magia é intenção. É colocar sua vontade naquilo que você faz, é uma coisa energética muito poderosa. Aí vai ter uma série de religiosidades e espiritualidades e teorias que vão guiar para determinados saberes e configurações do que é a magia. Magia para mim pode não ser o mesmo que é pra você: esses limites são borrados. Mas a conexão com a espiritualidade tem, sim, a ver com bruxaria; as ancestralidades que ensinam a manipular ervas, isso também é bruxaria. Se existem infinitas maneiras de ser mulher, culturas diversas e distintas formas de apreensão do mundo, existem também várias formas de bruxaria. Agora, no entendimento da literatura, vemos que essa conexão com o sobrenatural é algo muito forte. Lilith, Circe e uma série de bruxas ao longo da história aparecem como mulheres indomáveis, que têm um tipo de sabedoria que não pode ser controlada, que não quer ser controlada. 

Bruxaria também é conjuração. É honrar as que vieram antes e hoje lutam com você, trazendo-as para dentro do texto, por exemplo. Maryse Condé conta que teve um encontro espiritual com Tituba ao escrever o livro e que Tituba escreveu junto com ela, pois precisava contar a própria história. O mesmo acontece em diversos livros da América Latina que conjuram essas mulheres apagadas, silenciadas, mortas pela violência. Isso é conjurar, por meio da palavra, as existências de outras mulheres da história.#

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Lara Torres nasceu no interior de São Paulo, em 1990. É jornalista, escritora de ficção, gestora e idealizadora da Casa Inventada.

 

 

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2 comentários

Li Tituba. Vou buscar os outros titulos citados.

Vera Pons Lopes

Nossa que mágico, parece bruxaria mesmo, eu aqui escrevendo e pesquisando de forma solitária sobre uma personagem “bruxa” e topo com essa coletividade. Parabéns, vou procurar os livros citados.

Vilma Ribeiro

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